No meio do caminho tinha uma pandemia, tinha uma pandemia no meio do caminho

Carol Silva
3 min readDec 19, 2020

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Impossível não trazer a luz dos textos postados neste espaço, em um ano como o de 2020, a temática de uma pandemia causado pelo Coronavírus. Ainda que estejamos longe de um final, pelo menos é o que parece levando em consideração declarações de negacionistas e personalidades da nossa infeliz politica.

Pensando agora nos estudantes, crianças e jovens, em especial os nossos adolescentes que estão mais conscientes da aflição de passar por uma quarentena, não que os pequenos não estejam sofrendo, pelo contrário, todos estamos. O que cabe dizer aqui é que o grau de privilégio de cada um, determinante também o tamanho do impacto de 2020 sobre suas vidas. Sendo assim, como que os jovens com condições escassas ou até mesmo inexistentes estão encarando o ensino remoto? Como que o acesso as aulas e os conteúdos online fazem para chegar em casas de periferia sem internet?

As respostas são óbvios, no entanto, a pequena parcela que consegue mesmo que com dificuldades “acompanhar” remotamente as aulas, os mecanismos de condições de produção em seu papel de autor se difere de alunos com regalias e com o mínimo de estrutura básica para usufruir do ensino-aprendizagem neste momento. Este aluno em desvantagem também é leitor, autor, escritor e passa por este contexto de uma forma que impacta no seu discurso. Imaginemos esta cena, sentado na cadeira da cozinha, no sofá da sala ou sobre a cama, o desconforto acompanha com os irmãos brincando atrás, o rádio ligado, o quintal movimentado e a atenção é um luxo, como se produz estes textos, sendo influenciado por seu campo social?.

Para a AD, os sentidos do material linguístico se produzem nas relações entre formações discursivas, as quais relevam das formações ideológicas, ligadas, por sua vez, às implicações entre formações econômicas e formações simbólicas. Para a AD, há efeitos de sentido produzidos entre interlocutores, e estes são sujeitos que enunciam em dadas condições, sendo que só ao enunciarem é que se constituem como tal.

Ainda estendendo-me ao artigo Autores, Leitores, Leituras de Luciana Salazar Salgado, argumenta-se que:

Maingueneau trata desse cerco genérico desenvolvendo as noções de cena e cenografia. A cena genérica “atribui papéis aos atores, prescreve o lugar e o momento adequados, o suporte, a superestrutura textual para textos de um gênero particular”; a cenografia é produzida pelo texto, sendo que nem todos os textos constroem uma cenografia.

Em 2004, voltando às noções de cena, o autor distingue cena englobante, cena genérica e cenografia, refinando a proposta dos cinco graus de gêneros instituídos. A cena englobante está ligada ao tipo de discurso: religioso, publicitário etc.; a cena genérica diferencia, por exemplo, o panfleto religioso de uma pregação e do aconselhamento de um mentor espiritual, ainda que todos esses casos suponham “macro-formas” semelhantes. Conjugadas, cena englobante e cena genérica constituem o quadro cênico dos textos, que é delimitado a priori. Quanto à cenografia, ela se desenvolve no curso da textualização, estabelecendo progressivamente seu próprio dispositivo de enunciação, procurando, em seu desenrolar, tornar-se convincente, instituindo a cena enunciativa que lhe dá legitimidade dentro das coerções englobantes e genéricas.

E ouso chamar esta pandemia de cena genérica, que chega em escala global, mas como mencionado acima, vai impactar de maneiras diferentes e assim como li em algum local desta vasta internet, “não estamos no mesmo barco”. A cena englobante parece-me estar no que tipicamente o aluno produz, suas escrituras, leituras, leitores e autores, formando assim este quadro cênico educacional, com o recorte de uma cenografia do aluno, que não possui um computador em casa, que se quer possui internet e que estar na escola não é só o seu ambiente de aprendizagem, mas o seu local para realizar a sua função como estudante, pois fora deste espaço, esse papel apenas se distancia a cada quadra portão afora.

A definição deste terrível quadro cênico não se encerra em 2020 e talvez nem nos próximos anos, mas será visto quando o ingresso no ENEM reduzir, ou quando a ocupação em Universidades voltar aos berço de ouro e também quando a mão de obra juvenil crescer, pois esse é o resultado da pandemia, mas não exclusivamente dela, este é o resultado de um sistema social cruel do projeto Brasil.

(SALGADO, L.S. AUTORES, LEITORES, LEITURAS. IN CADERNOS DA UFF, N. 38, p. 217–238, 2009. PDF ZERO)

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Carol Silva

Escrita despretensiosa na tentativa de esvaziar o que aflige e contemplar a quem se acanhe.